Offline
Rita Lee musicou a irreverência e a liberdade em quase 60 anos de carreira; veja perfil
Brasil
Publicado em 10/05/2023

Em quase 60 anos de carreira, Rita Lee musicou a irreverência e a liberdade.

O público, os fãs, os apaixonados não queriam saber de despedida e deixaram isso claro quando Rita anunciou, em 2012, em um show no Rio de Janeiro, que iria deixar os palcos.

“Eu vou aposentar dos palcos. Tá bom. Foi tão bom!”, disse Rita Lee na época.

Bom é pouco. Para quem deu ao Brasil uma das melhores trilhas sonoras que um país pode ter e que o mundo inteiro curtiu e reverenciou premiando nossa majestade com o Grammy Latino de 2022 pela excelência e criatividade no conjunto da obra. Foram 315 músicas, 638 gravações registradas e muitos e eternos sucessos.

 

Rita Lee nasceu no último dia de 1947, caçula numa casa cheia de mulheres: a mãe Chesea, as irmãs Mary e Virginia e as agregadas Balú e Carú brincavam que eram o "harém de Charles" - o pai, dentista e provedor do casarão da Vila Mariana.

Descendente de italianos católicos por parte de mãe e de americanos protestantes por parte de pai, a menina Rita estudou em colégio francês e desde cedo já dava pistas do que seria: rebelde, apaixonada pelos bichos, pelo som e pela atitude rock n’ roll.

Rita foi descrita por Caetano Veloso como a mais completa tradução de São Paulo. Ele, como sempre, foi certeiro.

Rita Lee Jones nasceu e passou boa parte da vida no bairro da Vila Mariana. Com as colegas de colégio montou sua primeira banda - e foi numa apresentação perto de casa, no Teatro João Caetano, que o encontro com uma outra banda marcaria época e daria início a uma carreira longa, provocadora, revolucionária.

 

No começo foram "O’seis", banda que rendeu o primeiro compacto em 1966. Quando a metade da banda saiu, Rita Lee e os irmãos Sérgio e Arnaldo Batista formaram o trio “Os Bruxos”. O cantor Ronnie Von, inspirado, rebatizou como “Os Mutantes”.

 

 

As guitarras elétricas e o estilo diferentão conquistaram Gilberto Gil, que já tinha fama nos festivais quando chamou os jovens Mutantes para dividir o palco com ele com Domingo no Parque, em 1967. "Eu encontrei esses três jovens, dois rapazes e uma moça. São excelentes”, disseram Gil na época.

E lá estavam Rita e Os Mutantes fazendo parte da Tropicália, o movimento que sacudiu a música e o país.

A primeira rockeira rebelde brasileira colou nos baianos, chegou a tirar do lixo uma letra de Tom Zé que transformou, quem diria, em moda/rock. Tom aprovou.

Fazer figurinos para os shows era um dos prazeres. Rita tinha talento par ao desenho e para causar. Nunca devolveu o vestido de noiva que pegou emprestado de uma novela.

A originalidade dos Mutantes temperou a Tropicália e ampliou horizontes. Pela primeira vez, Rita saiu de São Paulo para a Europa.

A relação com os primeiros parceiros foi tão rica quanto complicada. Gravaram discos que são cultuados pelos fãs, moraram juntos numa comunidade meio hippie. Rita chegou a se casar com Arnaldo, mas os tempos eram loucos naquele começo dos anos de 1970, e o destino reservava outros caminhos para Rita.

 

 

“Eu fui expulsa. Comunicado tipo: você não tem o virtuosismo para instrumentos e não sei o quê. Então, você está fora”, contou Rita. “Uma banda acaba e a alma encarna em outra", Rita dizia que com ela era assim. Em 1974, a saborosa encarnação foi na banda Tutti Frutti.

 

O terceiro disco com os Frutis é considerado um divisor de águas ao firmar uma identidade para o rock nacional. Algumas letras foram escritas com Paulo Coelho. Ele mesmo, o escritor bestseller.

A menina que nasceu com os cabelos escuros, se fez adolescente loura e estourou como ruiva. Foi pioneira dos clipsA seu modo, mulher e artista livre, Rita afrontava a ditadura, teve muitas letras censuradas. Mas em 1976, foi presa e não por conta da política. A polícia achou maconha no seu apartamento.

Ela estava grávida e sempre disse que droga foi plantada pelos PMs, que não gostavam dela. O flagrante rendeu 45 dias na cadeia e uma grande amizade: Elis Regina, que fez visita e exigiu um médico. Depois Rita retribuiu com amor de irmã e música composta para ela.

O guitarrista Virtuosi, carioca e bonitão, conquistou praticamente à primeira vista o coração da roqueira. Ney Matogrosso foi o cupido e Roberto Carvalho, o amor, o pai dos três filhos, o parceiro dos maiores sucessos. Até briga de casal virou hit.

 

Foi um sucesso atrás do outro. Rita Lee foi a voz mais ouvida nas aberturas de novelas. “Lança Perfume” atravessou as fronteiras do Brasil. Foi gravada em espanhol, francês... hebraico.

Rita Lee, a nossa rainha que, sem nunca deixar de ser rock, seria também bolero, carnaval, Bossa Nova. Rita achou que era trote quando João Gilberto ligou chamando para cantarem juntinhos como dois namoradinhos no especial da Globo. Era verdade. O pai da Bossa Nova também adorava a Rita.

Na tela da Globo foram vários programas especiais feitos por ela e para ela. Rita contou para Pedro Bial como foi a construção da artista sempre em busca de alguma satisfação.

 

“Quer falar uma coisa que ninguém falou, quer dançar de um jeito diferente que ninguém dançou e, ao mesmo tempo, a gente sabe que tudo já foi feito”, relatou Rita.

Se tudo já tinha sido feito, restou à Rita Lee fazer de novo, do seu jeito. Um jeito muito paulistano. Um jeito afrontoso. Um jeito debochado. E às vezes condenado. Rita foi criticada pela Arquidiocese do Rio quando se vestiu como Nossa Senhora Aparecida num show de abertura para os Rolling Stones. A crítica da igreja rendeu uma nova música.

Mas foi também do Rio que Rita ganhou um título que a deixou muito orgulhosa. “Esse título de cidadã carioca, para mim, é um Oscar”, disse, na época, Rita.

Não chegou a ganhar a estatueta dourada, mas adorava cinema e participou de alguns filmes.

Por trás da cena, nos bastidores dos palcos, Rita viveu o inferno do álcool e das drogas pesadas. Foi internada várias vezes até sossegar com a chegada da primeira neta e da maturidade.

 

“Querida, olha. Quando eu era jovem, faltavam parafusos na minha cabeça. Então, eu era porra louca. Agora, eu acho, desconfio que eu achei alguns parafusos”, declarou Rita.

 

 

Mas, nos palcos, até a última apresentação em 25 de janeiro de 2013, no aniversário de São Paulo, foi a Rita única e amada de sempre.

Uma faceta que também teve a oportunidade de mostrar foi a do debate durante os anos de participação no programa “Saia Justa”.

 

Como se fosse pouco ser cantora, compositora, multi-instrumentista; como se não bastasse ser pioneira em dar selinho na Hebe; e iniciar a onda dos roqueiros fazendo shows acústicos, Rita foi uma alma feminista. Se impôs no mundo masculino do rock nos anos de 1960, cantou os direitos e desejos das mulheres livres e combateu a ditadura do seu jeito, com os jogadores da Democracia Corinthiana, o time do coração.

 

 

Rita, que passou os últimos anos no sítio ao lado de Roberto, da família e dos bichos, partiu depois de cumprir o destino quis: fez e sempre fará um monte de gente feliz.

Comentários